Apercebemo-nos das coisas quando há alguma mudança. É normal e até natural. A rotina, o hábito, tudo isso leva a que dispersemos a atenção, que os nossos gestos sejam como que mecanizados. Por força da repetição, reagimos em vez de agirmos. O gesto aparece sem passar por aquele que tomamos como centro motor do nosso corpo: ao contrário da acção, a reacção dispensa o pensamento. Ele, sem reparar nisso, já não era ele há muito tempo. Deu-se conta disso no dia em que teve de se despedir dela para se ausentar durante o fim-de-semana. Contas bem feitas, despedia-se por um dia. Saía na sexta-feira à noite e regressaria ao início da tarde de domingo. Bastou. Ali estava aquele homem, o mesmo tronco e os mesmos membros. Um pescoço delgado suportava a cabeça que, noutros dias, os gestos ignorariam. Havendo uma radiografia, ela haveria de confirmar os ossos todos na disposição esperada. O sistema respiratório mantinha-se inalterado, assim como o sistema digestivo e o nervoso central. Só aquele homem, até esse momento convencido, como toda e qualquer pessoa que o olhasse ou o conhecesse intimamente, que era o mesmo, saberia dizer que não era. Saberia dizer, mas ficaria confuso e impotente quando o tentasse explicar. Quando o tentasse perceber, até. Nessa altura era a cabeça que fazia por gerir os gestos, articular as palavras, coordenar tudo aquilo que o ramerame quotidiano lhe roubava das responsabilidades. A confusão foi inevitável: os braços faziam os movimentos de alguém que não era ele, a boca enchia-se de palavras que não lhe saíam, ou que saíam aos soluços, imperceptíveis. A cabeça perguntava-se
- Que gesto hei-de fazer? Como o faria ele habitualmente?
como se tivesse, ela própria, uma outra cabeça. O homem que ali estava
- Eu... que... não sei...
continuava a não conseguir escolher as palavras que lhe pertenciam e a imitar os gestos que já tinha visto em qualquer lado. Não fazia sentido para ninguém que ele dissesse que não se sentia o mesmo, sem o conseguir explicar.
- Anda daí, deixa-te de coisas.
Ninguém lhe estranhava os movimentos, só ele os sabia mais pesados que de costume, só ele conseguia descortinar aquela lentidão maior nas acções. Aquele atraso que um gesto pensado tem obrigatoriamente que ter, por mais rápido que seja o pensamento.
A mudança faz-nos bem, faz-nos olhar para dentro. Conhecemo-nos melhor na mudança: do que somos capazes, do que não somos. Não fosse aquela despedida e o homem que ali se encontrava de pé, parado, alheio a tudo o que o rodeava, continuaria a pensar que era o mesmo. Ou continuaria a não pensar, melhor dizendo, assumindo-se como o mesmo.
Demorou aquele fim-de-semana a reencontrar os seus gestos e as suas palavras. A espontaneidade. Voltou a encontrar-se quando a reencontrou. Diferente, mas ele.
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